- Você tá falando com esse cara de novo?
- Não.
- Tá falando sim!
- Não, tá louco?
- Tá aqui ó, no seu celular. Você ligou pra ele ontem às sete, sete e meia, sete e trinta e seis e sete e quarenta e sete.
- Ah, ontem... Mas não é sempre que eu falo, falei ontem, mas fazia tempo... Foi um azar você ter olhado meu celular justo...
- Azar? Azar?! Azar foi eu ter te conhecido!
Um barulho ensurdecedor, uma dor enorme no peito. Fechei os olhos no segundo do susto. Não podia acreditar em tamanha violência. Era um
tapa na minha cara, uma humilhação, um ato desumano e injustificável:
meu celular espatifado em três partes inúteis e sofridas. "Arrebentei seu celular para não arrebentar a sua cara!" Ele ainda grita como se tivesse me feito um favor.Pois que tivesse espatifado minha cara, que é dura como pau de cara-de-pau. Que merecia acordar de algum sonho tão bonitinho e cor-de-rosa, mas que tanto mal fazia a tanta gente. Comecei a chorar compulsivamente. Ele andava pela casa pálido, com a cor e a carranca inconformada da traição. Eu me acabava em lágrimas olhando os pedaços do meu celular, tentando juntá-los na esperança de algum sinal. Nunca desejei tanto ver aquela luzinha verde e aquele barulhinho de "estou ligado à espera de suas ligações minha querida". Ele pensava num plano, ele pensava num assassinato, ele pensava o quanto não merecia aquilo pois estava tão empenhado em me amar, ele pensava que talvez merecesse porque quando eu estava tão empenhada em amá-lo era como se eu não existisse. Ele desistia de pensar e se jogava em algum canto chorando como um bebê. Eu sentia uma pena que me dilacerava: um celular tão bonitinho, presente de mamãe.Ele gritava pela casa: "é muita injustica! É muita injustiça! A gente vai se perder!" Perder? A dor da perda era realmente a maior que um coração mimado podia sentir. Eu me contorcia: decerto eu havia perdido mais de 200 números de telefone de uma só vez. Inconformado, ele me chacoalhava e, olhando tão fundo nos meus olhos que me envesgava, dizia: "uma história tão bonita, como você pode..."
Tantos números, tantas histórias. Lembrava daquele convite meio sem jeito, do homem que me deixava tão sem jeito com a sua inteligência para baixarias. Tão tímido e tarado. Tão inteiro em seus opostos, exatamente como eu. Não sabia o telefone dele de cor, pois esse era para de vez em quando, pra nunca perder a graça e para dar tempo de renovar as piadinhas e esfriar a orelha. Lembrava do recadinho rápido e cheio de carinho bem na virada do ano-novo. Minhas amigas me xingando para eu não levar o celular pra festa porque era uma história descabida, proibida e obviamente ele tinha uma fila de pessoas muito mais importantes do que eu pra abraçar naquela noite. Aquele recado foi o maior abraço que eu podia receber, mesmo distante. Foi naquela noite que eu me
apaixonei. E uma outra ligação, tarde da noite, de um bar, um amigo sem vontade de voltar pra casa: "por que se eu sou feliz com a vida que tenho, você me faz tanta falta?" Pessoas especiais. Ele não tinha o direito de destruir pessoas especiais. Destruir números, lembranças e minha liberdade de revivê-las novamente quando eu bem quiser.
Ele não tinha esse direito. De colocar
ponto final nas minhas
histórias eternamente
enroladas e
sem fim. Vou terminar tudo, arrumar meu celular e voltar a viver. Lembro do dia em que ele me ligou às três da manhã, num ato mais desesperado do que o que teve em atirar meu celular na parede: "eu sou tão sozinho, eu sou tão sozinho..." Pela primeira vez ele abandonou o personagem forte que era o seu predileto e era a sua sobrevivência. Aquilo foi uma
prova de amor, ele se desnudou finalmente. Naquele momento senti o
♥ voltar a aquecer: eu também sou tão sozinha. Você quebrou meu celular! Você quebrou meu
♥! Resolvemos consertar tudo,
perdoar tudo e continuar vivendo juntos.Não era mais paixão, o que me fazia de vez em quando lembrar com melancolia daqueles números do meu celular. Mas era
amor, o que me fazia torcer para ele atirar o celular na parede tudo de novo.
♥